Lei do superendividamento: precedente do STJ e o impacto para as empresas
STJ limita penalidade a credores na Lei do Superendividamento, resguardando a segurança jurídica e o equilíbrio entre proteção ao consumidor e previsibilidade contratual.
A Lei nº 14.181/2021, conhecida como “Lei do Superendividamento”, alterou significativamente o Código de Defesa do Consumidor (CDC), incorporando mecanismos voltados à proteção do consumidor pessoa física que se encontra em situação de superendividamento. Seu objetivo central é permitir a reestruturação das dívidas de boa-fé, por meio da conciliação com credores, de forma a preservar o mínimo existencial do devedor e reintegrá-lo à vida econômica.
Embora a legislação tenha o louvável propósito de resguardar consumidores vulneráveis, ela suscita preocupação crescente no setor empresarial, sobretudo entre instituições financeiras e demais fornecedores de crédito. Isso porque, em muitos casos, empresas vêm sendo compelidas judicialmente a renegociar dívidas que originalmente estariam excluídas da abrangência da lei, como os contratos de empréstimo consignado.
O empréstimo consignado, por definição, possui natureza diferenciada: trata-se de operação com desconto automático em folha de pagamento, com risco reduzido de inadimplência e, portanto, taxas de juros mais baixas. A inclusão desses contratos no rol de dívidas passíveis de repactuação pode desvirtuar a finalidade do modelo e comprometer a previsibilidade e segurança jurídica dos contratos firmados.
Além disso, a imposição de renegociações sem critérios claros ou com base em presunções pode gerar efeito contrário ao pretendido pela lei: retração do crédito, aumento dos juros e maior seletividade na concessão de financiamentos, prejudicando exatamente o público que se pretende proteger.
Nesse sentido, destaca-se o art. 104-A do CDC, estabelecido pela Lei do Superendividamento, que prevê a instauração do processo de repactuação de dívidas mediante plano de pagamento apresentado pelo consumidor. Em seu o §2º, o artigo estabelece que, havendo a ausência de credores regularmente convocados à audiência conciliatória, o juiz poderá homologar o plano de pagamento nos termos propostos pelo devedor, levando a aceitação compulsória por parte dos credores. Ou seja, haverá imposição de uma renegociação sem critérios claros, a respeito de contratos que sequer deveriam ser discutidos à luz da citada lei.
Porém, o que se observa no âmbito das demandas já ajuizadas, é a crescente aplicação equivocada desse dispositivo aos credores que, mesmo comparecendo ao ato de conciliação, não apresentam proposta de acordo ao devedor solicitante, levando os magistrados a uma interpretação diversa do que realmente prevê o artigo, com a consequente imposição arbitrária das penalidades ao credor.
Em razão disso, o STJ, em recente entendimento, trouxe importante delimitação quanto à interpretação deste dispositivo. Após ter sido mantida pelo TJRS decisão que aplicou as penalidades do art. 104-A, § 2º, do CDC, ao credor que, embora tenha comparecido à audiência de conciliação devidamente representado e com poderes para transigir, não apresentou proposta de acordo, o STJ em análise do caso, fixou entendimento de que é ônus do consumidor superendividado apresentar, na audiência conciliatória, sua proposta de repactuação das dívidas, e não do credor.
Assim, a ausência de proposta de acordo pelo credor não deve equivaler ao não comparecimento à audiência. Conforme esclarecido pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator do processo, “como é ônus do devedor a apresentação de proposta conciliatória, ela não pode ser exigida dos credores e, como a consequência da falta de acordo é a eventual submissão do contrato à revisão e à repactuação compulsórias, não há respaldo legal para a aplicação analógica das penalidades do art. 104-A, parágrafo § 2º, do CDC”.
Essa interpretação do STJ visa equilibrar o instituto, afastando eventuais distorções que possam surgir em razão da mera ausência de proposta de acordo pelos credores em audiência. Evita-se, assim, que os credores sejam penalizados e que se prejudique a relação jurídica existente.
Nesse contexto, fica evidente que a aplicação da Lei do Superendividamento ainda está em fase de consolidação nos tribunais, e o recente posicionamento do STJ sobre a aplicação das penalidades do art. 104-A, §2º, do CDC, sem qualquer análise lógica pelos magistrados, representa um importante passo para a preservação do equilíbrio entre os direitos do consumidor e do credor, bem como para a segurança jurídica das relações contratuais.
É necessário, contudo, que o Judiciário siga atento às particularidades dos contratos, especialmente no que diz respeito ao consignado, a fim de não transformar a proteção daquele que é vulnerável em oneração indevida de quem atua com responsabilidade no mercado de crédito. A proteção ao consumidor deve caminhar lado a lado com a previsibilidade e confiança entre as partes — bases essenciais de qualquer sistema econômico saudável.