Demora de mais de 30 dias para reparo não enseja a aplicação automática das hipóteses previstas no art. 18, § 1º, do CDC
Muito se discute sobre os abusos perpetrados por fornecedores de produtos que relutam em cumprir os deveres impostos pela lei. Todavia, sem desmerecer a absoluta relevância da discussão para fazer valer as prerrogativas dos consumidores, atenção bem menos notável é dispensada a situações, que também ocorrem, em que a tutela pretendida pelo consumidor extrapola o real objetivo da proteção a ele conferida pela legislação especial, tornando desproporcional a medida entre o pretenso direito buscado pelo consumidor e a obrigação muitas vezes imposta ao fornecedor.
Para fins de exemplificação, a despeito da fácil interpretação do art. 18 do CDC nem sempre a sua aplicação se dá de forma mais escorreita e em justa repercussão para ambos os polos da relação.
Veja-se que se por um lado o fornecedor de produtos tem o dever de colocar no mercado bens adequados ao fim a que se destinam e que atendam às legítimas expectativas do consumidor, por outro também lhe é assegurado o direito de reparar eventual vício que venha a comprometer a qualidade do produto por ele fabricado antes que possa o consumidor exigir a substituição, o desfazimento do negócio ou o abatimento do preço.
Ocorre que além do prazo legal de 30 dias conferido ao fornecedor para reparo o caput do art. 18 do CDC também se refere à impropriedade ou inadequação do bem como condição para que o consumidor possa se valer das hipóteses previstas no art. 18, § 1º, do CDC, circunstância esta não raras vezes ignorada pelos julgadores pátrios.
Com efeito, não basta o fornecedor extrapolar o prazo de 30 dias para reparar o produto como única condição objetiva para imediatamente se conferir ao consumidor a escolha entre substituição, o desfazimento do negócio ou o abatimento do preço. É necessário que reste demonstrado o comprometimento da qualidade do produto que o torne inadequado ou impróprio para o fim a que se destina, sob pena de subverter a tutela de um direito e o converter em uma fonte de enriquecimento ilícito por parte do consumidor.
Situação prática envolvendo esta discussão foi analisada de forma elogiável recentemente pelo Tribunal de Justiça do Paraná, em um caso em que foi provido o apelo da montadora de veículos que havia sido condenada a restituir integralmente o valor pago por um veículo adquirido novo no ano de 2016, em razão da demora de 152 dias no fornecimento de uma nova chave que apresentou problema quanto ao travamento das portas poucos meses após a sua aquisição.
O acórdão ponderou que embora tenha havido atraso de 152 dias para o fornecimento da nova chave, que precisou ser importada da França, este problema não interferiu na funcionalidade do veículo que não deixou de ser utilizado pelo consumidor, até porque a trava elétrica funcionava perfeitamente através do ativamento manual, pelo que considerou que a devolução integral do valor do veículo, acrescidos dos consectários legais, em razão da demora do reparo de um acessório seria um desvirtuamento do art. 18 do CDC.
Também salientou que em se tratando de um acessório do veículo as alternativas do art. 18 do CDC, se aplicáveis, deveriam recair apenas sobre o acessório, não sobre o veículo em si. Afinal, com fundamento na exegese do art. 92 do CC, ponderou que embora a funcionalidade da trava elétrica dependa da existência do veículo, a fruição de todas as funcionalidades do veículo independe do sistema de travas elétrica.
Logo, tendo o consumidor utilizado o veículo por mais três anos sem qualquer restrição de uso, a devolução integral do valor pago pelo veículo constituiria verdadeiro enriquecimento ilícito por parte do consumidor, violação do princípio da boa-fé e abuso de direito.
Análise e conclusão bastante semelhantes também se deram perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ao manter a sentença de improcedência em um caso em que o consumidor requereu o desfazimento do negócio e indenização por danos morais em razão do reparo do veículo ter demorado mais de 30 dias.
No caso submetido à análise do Tribunal Gaúcho, embora o reparo da caixa de câmbio realmente tenha ultrapassado em dois dias o prazo legal, o acórdão justificou que o consumidor aceitou receber o bem sem ressalvas e dele fez uso normalmente nos últimos seis anos, sem qualquer restrição ou reaparecimento do problema que ensejou a propositura da demanda, pelo que entendeu não só pelo descabimento da pretensão como aplicou de ofício multa por litigância de má-fé em desfavor do consumidor.
Segundo o acórdão, o fato do consumidor pretender receber o montante pago no ano de 2012, acrescidos dos consectários legais, sob o fundamento de que o prazo legal para reparo teria extrapolado em apenas 2 dias mesmo tendo feito largo e irrestrito uso do veículo ao longo dos últimos anos, tendo percorrido mais de 80.000 km após o reparo, desvelaria a má-fé processual por parte do consumidor, sobretudo porque durante o tempo em que o veículo ficou parado para reparo foi disponibilizado veículo reserva ao consumidor, não lhe causando prejuízos.
Como se vê, a adequada e justa análise envolvendo pedidos de substituição, desfazimento do negócio ao abatimento proporcional do preço, transcendem a análise isolada do art. 18 do CDC, sendo essencial o diálogo das fontes entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil, a fim de se buscar soluções coerentes e a justa responsabilização, afastando-se assim a proliferação de decisões que irresponsavelmente chancelam, sob o fundamento de proteção do direito do consumidor, verdadeiros abusos de direito.